Quem são os policiais que
querem a legalização das drogas e o fim da violência
De São
Paulo
24/09/201606h00
A existência de policiais que são contra a
violência surpreende e causa estranheza aos colegas; em alguns casos, esses
policiais ficam isolados e são discriminados
Três adolescentes apanham de uma
fila de policiais militares. É Carnaval em João Pessoa, e os jovens invadiram
um orfanato para roubar uma televisão e uma bicicleta. "Onde está a
arma?", perguntam os policiais. Entre uma pancada e outra, dois cadetes
que acompanhavam a operação saem da sala.
A cena, que teria acontecido em
2006, foi descrita à BBC Brasil por um dos cadetes que reprovaram a abordagem -
a Secretaria de Segurança da Paraíba não se pronunciou até a publicação desta
reportagem.
Dez anos depois e agora capitão
da PM, Fábio França diz que ainda rejeita a violência na instituição. Ele faz
parte de um grupo de policiais civis e militares que se autodeclaram
"antifascistas" e criticam a política de segurança pública adotada no
Brasil.
Espalhados pelo país, seus
integrantes - grande parte deles acadêmicos ou com pós-graduação - querem o fim
da militarização e a legalização das drogas.
"O que me levou a despertar
foi tentar entender que mundo era esse. Percebi o comportamento dos meus
colegas e isso foi me angustiando. Queria saber por que se transformavam
naquilo", diz França, que então decidiu fazer mestrado e doutorado em
sociologia. "Procuramos que a PM se reencontre com as instituições
democráticas."
Para fazer esse debate, o grupo
se organiza há alguns anos pela internet e em eventos de associações como o
Leap (agentes da lei contra a proibição das drogas). Um dos sites que concentra
essa discussão, o Policial Pensador, teve 200 mil visualizações desde que
entrou no ar, em 2014. Criada pelo tenente Anderson Duarte, do Ceará, a página
reúne artigos sobre temas como redução da maioria penal.
Duarte, de 33 anos, diz que a
convergência dessas ações nos últimos anos foi provocada pelo maior acesso dos
profissionais de segurança à educação e pelo fortalecimento de um discurso
conservador, que gerou a necessidade de um contraponto. "Muitos
pares têm pensando de forma diferente e faltava um espaço para discussão.
Sempre partimos do ponto de que não existe democracia sem polícia, e aí
perguntamos: que polícia nós queremos?"
Anderson
Duarte é tenente da Polícia Militar e criou o site Policial Pensador para
discutir a segurança pública Arquivo
pessoal
Guerra às
drogas
Um dos principais pontos
discutidos por esse grupo é o combate ao tráfico de drogas. Para eles, esses
confrontos provocam muitas mortes e seriam ineficazes.
"Não se tratam de ações contra as drogas, que são inanimadas, mas contra as pessoas. A polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo. Temos números de guerra", diz Duarte, que também é doutorando em Educação.
A "guerra às drogas"
estaria ligada à militarização das instituições, diz o delegado e diretor do
Leap Orlando Zaccone.
De acordo com ele, seguindo a
lógica militar, a polícia é voltada para embates e precisa estabelecer um
inimigo: o traficante. Zaccone questiona a prioridade que o Estado dá a um
crime que, pela lei, não ameaça à vida.
"O tráfico é o crime que
mais encarcera mulheres e o que deixa mais tempo preso hoje. E isso é estranho,
porque não tem vítima (na legislação). O que se defende na lei é um bem
jurídico, uma questão de saúde pública. A importância que dão a ele tem a ver
com a militarização, que precisa de um oponente para se manter."
Militarização
Um dos caminhos apontados por
Duarte e Zaccone para acabar com o conflito é a legalização das drogas, com
venda e uso regulamentados pelo governo. No entanto, dizem que para chegar ao
cerne do problema - a desmilitarização - é necessária uma mudança profunda:
rever o papel da polícia.
O capitão Fábio França afirma que
a origem da polícia brasileira está no século XIX, quando foi usada para
reprimir revoltas contra o Império.
O casamento entre polícia e
Exército se consolidou na Constituição de 1934, quando a primeira passa a ser
subordinada ao último. Na ditadura, os policiais militares, que atuavam só no
caso de distúrbios civis, saíram dos quartéis e foram para o dia a dia das
ruas.
O
delegado Orlando Zaccone segue a doutrina hare krishna e autor de livros sobre
segurança pública
Arquivo
pessoal
De acordo com os entrevistados, a
lógica militar, de combate e aniquilação do adversário, ajudaria a explicar o
comportamento violento de policiais.
Tais ideias, no entanto, não são
consenso. Para José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia
Militar e ex-secretário Nacional de Segurança, a proximidade com o Exército é
necessária para manter uma estrutura de controle e disciplina.
Uma polícia desmilitarizada,
pondera, poderia se corromper com mais facilidade. "Uma estrutura de
contenção é importante para quem está sujeito a muito estresse no dia a dia
profissional."
Treinamento
Outro tema questionado pelos
policiais que se dizem "antifascistas" é o treinamento. França,
que estuda a formação desses profissionais, diz que os recém-chegados têm dois
currículos: o formal, que inclui direitos humanos, e o "oculto", com
práticas que têm mais força. O discurso progressista, afirma, fica na teoria
numa rotina de xingamentos e castigos.
"A pedagogia militar incute
um processo em que a humilhação é a tônica central, alunos apanham dos
instrutores. Os policiais não veem o que é direitos humanos porque não têm seus
direitos respeitados", diz.
Segundo levantamento de 2014,
realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Fundação Getúlio Vargas e
Secretaria Nacional de Segurança Pública, 28% dos policiais ouvidos afirmaram
ter sido "vítima de tortura em treinamento ou fora dele" e 60%
narraram situações de desrespeito ou humilhação por superiores.
Para João*, sargento da Polícia
Militar do Ceará, ao viverem sob esse regulamento estrito, os policiais querem
reproduzi-lo com os civis. "Quando privam sua liberdade por causa de uma
farra amarrotada ou de um atraso, você transfere essa lógica para a sociedade.
Acha que a população tem que ser subserviente a você. Nossa formação é voltada
para guerra - existe nós e os inimigos. E às vezes são os cidadãos que juramos
defender."
Na contramão desse pensamento, o
coronel José Vicente considera que deve haver pressão nos exercícios, porque
eles preparam os profissionais para uma rotina de medo. "O treinamento
para lidar com estresse não é feito com PowerPoint. Tem que colocar sob
estresse para o agente saber lidar com as circunstâncias."
Entretanto, o ex-secretário de
segurança pondera que é preciso melhorar as relações entre chefes e
subordinados, impedindo lideranças muito autoritárias.
Sangue
nos olhos
Segundo esses policiais, a imagem
de violência que o treinamento e a atuação da polícia geram atrai pessoas de
perfil agressivo, que desejam usar a farda para exercer essa brutalidade.
O investigador da Polícia Civil
da Bahia Denilson Neves, 47, diz que precisou acalmar os ânimos várias vezes,
quando estava participando de diligências, porque "as pessoas estavam com
sangue nos olhos".
Segundo Neves, que é militante de
esquerda há 30 anos, parte dos recém-chegados tem uma visão equivocada da
profissão. "Eles entram para fazer justiça com as próprias mãos.
Reprimir e matar têm sido a lógica da polícia e muitos vão lá porque
identificam com a ideia."
Para os entrevistados, também há
influência de um discurso conservador, que estaria se expandindo no Brasil,
sobre esses profissionais. Como uma esquerda que renega o policial, diz o
delegado Orlando Zaccone, seções ligadas à direita ganham
adeptos. "Os policiais têm pouca ou nenhuma atenção das esquerdas.
Quando a direita aparece e diz que ninguém cuida da vida dos policiais, que são
heróis, tem uma recepção grande."
O sargento João fala de um
"glamour" que existe na militarização. Setores mais tradicionalistas,
afirma, acham que as organizações de segurança vão dar alguma "pureza
moral" para o país.
"Teria vergonha de alguém
querer tirar foto comigo (em um protesto), porque não seria pela minha missão
de proteger a sociedade. Seria pelo uso da força."
Há 15 anos na PM, João diz que, por ser ter uma visão crítica, é hostilizado pelos colegas.
O policial conta que virou
persona non grata em grupos no WhatsApp e tem suas postagens no Facebook
ridicularizadas. Num dos posts, ele reprova a ação de PMs acusados de cometer
uma chacina para vingar a morte de um amigo. "Todos disseram 'como você
faz isso? O cara (assassinado) era pai de família'. E as famílias dos meninos
mortos não estão sofrendo, não? Sou visto como uma anomalia. Muitos dizem que
sou um lixo."
Casos como esse não se restringem
à PM. A escrivã Cecilia*, da Polícia Civil de São Paulo, conta que, ao fazer
qualquer questionamento, é considerada inocente.
"Existe uma ideia de que há um inimigo dentro da sociedade. E, a meu ver, a função é de proteção."
Para Cecilia, de 41 anos, é
difícil para seus superiores compreenderem isso. "Quando digo que não
quero uma polícia opressora, respondem que estou fazendo carinho em
bandido."
Convencimento
Com tantos empecilhos e em menor
número, os policiais desses grupos buscam influenciar os companheiros de
trabalho aos poucos. Antes das operações, o investigador Denilson Neves,
da Bahia, pergunta aos colegas: "o que ganhamos ao tirar a vida de
alguém?". "Um ou outro policial pode fazer essa reflexão crítica, o
que destrói a possibilidade de fazerem algo no automático."
Além do boca a boca, o grupo se
organiza para entrar num debate amplo sobre esses temas - e atrair
simpatizantes. Parte de seus integrantes negocia a publicação de um livro.
O primeiro passo para a mudança,
afirmam, é acelerar a profissionalização do policial como um agente protetor.
Para eles, um PM deveria ser especialista em negociação de conflitos, e não em
técnicas de guerra.
Inspetor
no Rio de Janeiro, Hildebrando Saraiva diz que instituição não precisa ser
violenta Arquivo
pessoal
"A polícia sempre será um instrumento
de manutenção da ordem, mas não significa que seja reacionária ou fascista. Ela
vai continuar defendendo a vida e a propriedade privada, mas não precisa ser no
pau de arara", afirma o inspetor da polícia civil do Rio de Janeiro
Hildebrando Saraiva, 35.
"A ideia é criar métodos modernos e democráticos."
O objetivo proposto, explica o
delegado Orlando Zaccone, é aproximar a corporação das pessoas e buscar mais
independência do poder político, o que exige mudar o entendimento do Estado
sobre segurança.
Longe dos ideais almejados, os
policiais do grupo se dizem otimistas. "Acho que vivemos um momento
de transição. Se você comparar com 20 anos atrás, melhorou muito. Até tem gente
rejeitando imagens de chacina no WhatsApp", diz o inspetor Neves.
*Os nomes foram substituídos a pedido dos entrevistados.
*Os nomes foram substituídos a pedido dos entrevistados.
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