A mãe que
sofreu aborto na lama e luta para incluir feto entre vítimas de Mariana
Ricardo
Senra - @ricksenra Da BBC Brasil em São Paulo
- 4 novembro 2016
Rogério Alves TV Senado Urso de pelúcia soterrado em
Bento Rodrigues, após rompimento de barragens da Samarco
"Pensa em milhões de
trovoadas de uma vez. Era o barulho da lama. As paredes da casa começaram a
tombar em cima da gente. Meu irmão gritava. Veio a lama e arrancou meu filho de
2 anos e minha sobrinha dos meus braços. Foram os dois, dentro da lama. Eu
afundei. Não enxergava mais nada."
Priscila Monteiro, de 28 anos,
fazia aniversário naquela tarde de quinta-feira, 5 de novembro de 2015, em
Bento Rodrigues, vilarejo perto de Mariana (MG). Estava grávida de 3 meses.
Faria um ultrassom no dia seguinte. "Queria muito saber o sexo do
bebê."
"Aí, senti a dor do aborto.
A dor do aborto. Perdi meu bebê e fui arrastada pela lama. Eram ondas, eu
afundava, me cortava toda. Engoli muita lama. Furei meu rosto e cortei costela,
pernas, braços, nádegas. Meu maxilar saiu do lugar. A lama levou toda minha
roupa."
Narrada um ano depois à BBC
Brasil, a história de Priscila ilustra o impacto da maior tragédia ambiental
brasileira de que se tem notícia e vai além do leito cor de barro do Rio Doce,
dos peixes e margens contaminados, dos destroços de casas sem teto.
Ela foi arrastada por mais de um
quilômetro e ficou 13 dias internada. No segundo dia, soube que o filho Caíque
fora encontrado vivo. No quinto, lhe disseram que a sobrinha Emanuele Vitória,
5, havia morrido. O marido e o segundo filho, de 9 anos, estavam bem.
Desde então, pede que o bebê que
carregava na barriga seja reconhecido como a 20ª vítima fatal da tragédia. Mas
a dona da barragem rompida, a mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela
anglo-australiana BHP Billiton, nega responsabilidades sobre o feto.
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Edir Macedo se deu mal'
copyright Reproducao Image caption À esquerda, Priscila, que perdeu bebê
enquanto era arrastada pela lama; ao lado, boletim médico atesta gravidez
Laudos
"A Samarco diz que o estouro
da barragem não seria suficiente para ela perder o bebê", diz o advogado
de Priscila.
Procurada pela BBC Brasil, a
empresa disse que "não comentará o assunto". A reportagem enviou
quatro perguntas à mineradora:
- A Samarco reconhece a perda do
bebê em decorrência da tragédia?
- Que medidas compensatórias a
empresa propôs ou proporá?
- A família pede que o bebê seja
incluído na lista de vítimas. Seria o 20º óbito. Qual é o comentário da
empresa?
- A Samarco inicialmente
questionou a gravidez de Priscila. Por quê?
Na única vez em que comentou
oficialmente o caso, há seis meses, a Samarco informou que contratou um
especialista para examinar Priscila e que ele constatou que ela não estava
grávida.
Image
copyright Reuters Image caption Priscila foi arrastada por mais de um
quilômetro, ficou 13 dias internada, abortou na lama e perdeu a sobrinha
Emanuele Vitória, de 5 anos
"Será que é por que eu tinha
perdido o bebê?", questiona hoje Priscila, irritada. Ela diz que nunca viu
o resultado do exame.
Seus advogados apresentaram à
reportagem três fichas médicas. "Encontrava-se grávida, com confirmação
laboratorial e clínica, até a última consulta", diz um deles.
"Gestante de 8 a 12 semanas", diz outro. "O obstetra que a
avaliou informou que perdeu o bebê", diz o terceiro.
"Não são 19, são 20
(mortes). Meu filho é vitima. Eu amava. Eu tinha roupinhas", diz a jovem,
que hoje mora em Mariana com a família - o marido e dois filhos.
'Você tem que esquecer'
copyright Reuters Image caption Vista aérea mostra escola infantil soterrada
após onda gigante de restos de mineração da Samarco
No aniversário de um ano da
tragédia, a família ainda se adapta à nova vida em Mariana.
"Meu filho Caíque volta para
casa chorando da escola porque chamam ele de 'pé de lama'. Chamam a gente de
aproveitadores. Ele não tem mais liberdade para brincar na rua, aqui eu não vou
pra soltar (de casa)."
A reportagem pergunta por quê.
"Ele pode ser atropelado, roubado, morto. Tem gente que mata aqui por
nada."
Séria durante toda a entrevista,
sem rir ou chorar, Priscila conta que a empresa ofereceu acompanhamento
psicológico às vitimas logo após o desastre.
Tentou, mas não frequentou as
sessões por muito tempo.
"Parei porque os psicólogos
pediam para eu esquecer. Como esquecer? Eles pediam para eu contar como
aconteceu. Eu contava tudo e eles falavam: voce tem que esquecer. Eu perdi meu
bebê, minha sobrinha morreu, meu filho quase morreu. Como assim esquecer?"
Legislação
copyright Reproducao Image caption Boletim médico assinado por psicóloga no dia
seguinte à tragédia
Seus advogados ajuizaram uma ação
contra a mineradora Samarco, que junto a suas controladoras sofre hoje mais de
18 mil processos judiciais decorrentes da ruptura das barragens que guardavam
milhões de metros cúbicos de restos de minerais, produtos químicos e entulho.
"Como ainda não foi
designada audiência, ainda a empresa não se pronunciou dentro do
processo", diz a acusação, que pede indenização por danos materiais e
morais devido ao trauma de Priscila.
A reportagem não encontrou
registros de casos similares ao de Priscila no Brasil.
Para Paulo Avila Fagundez,
professor de bioética e biodireito da Universidade Federal de Santa Catarina, o
episódio pode ser interpretado pelo conceito de "nascituro", presente
na legislação brasileira.
"A pessoa passa a existir a
partir do momento em que o feto sai do ventre. Mas a lei indica os direitos do
nascituro, aquele que ainda virá a nascer, porque o aborto é hoje um crime
contra a vida no Brasil."
Para a lei, explica o professor,
o nascituro é como "uma pessoa virtual", "uma expectativa de
vida humana".
"Segundo a lei, qualquer
interrupção que ocorra no curso da gestação é crime e passível de punição, e
quem comete o aborto na pessoa responde por crime. Nesse caso, o acidente foi
responsável pelo aborto, contra a vontade da gestante."
Nove meses depois da tragédia,
diretores das mineradores reconheceram pela primeira vez que o episódio foi
fruto de uma obra na barragem. O anúncio foi feito pelos presidentes da Samarco
e da Vale e pelo diretor comercial global da BHP - jornalistas não foram
autorizados a fazer perguntas na ocasião.
"Eu queria ver o presidente
da Samarco um dia", diz Priscila.
"Se eu tivesse feito um
aborto, estava presa, teria cometido um crime. Ele arrancou meu filho à força
do meu ventre e nada acontece."
copyright Reproducao Image caption Relatório assinado pelo médico
que acompanhava Priscila no programa Médico de Família, em Mariana
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